Pobres mais pobres, ricos mais ricos
O enfrentamento da pobreza e das desigualdades seguirá sendo um dos maiores desafios da humanidade no período pós-Covid-19. Já eram antes da pandemia, como revelam os compromissos assumidos para redução da fome e da pobreza em 2000 na Agenda de Desenvolvimento do Milênio, e depois reiterados na Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas em 2015. Os efeitos diferenciados da pandemia em termos de óbitos, condições de vida da população, emprego e produção econômica entre países expõem o estágio mais avançado ou mais atrasado em que eles se encontram no cumprimento dos objetivos dessa agenda.
No caso brasileiro as consequências humanitárias e os efeitos desastrosos da pandemia, decorrentes da imperícia na gestão da crise sanitária, atingiram o país no pior momento, quando é incontestável a regressão no enfrentamento da pobreza e da desigualdade, pelos efeitos de cinco anos de primado de austeridade fiscal na gestão das políticas públicas.
Triste e lamentável, pois a situação poderia ser muito diferente pelo legado de políticas públicas e capacidade de gestão deixado nas duas décadas anteriores. Queda da pobreza, da desigualdade social e melhoria de várias dimensões das condições de vida no Brasil ao longo de 2000 a 2014 é um aspecto reconhecido por diversos pesquisadores e instituições, aqui do país e do exterior, por relatórios de agências das Nações Unidas como a FAO, Cepal e PNUD e organismos multilaterais de fomento como Banco Mundial e Banco Interamericano. Os estudos e analistas podem dar diferentes pesos e gradações que conferem ao papel das políticas sociais, das decisões internas de política econômica e do cenário econômico internacional nos avanços sociais observados, mas não podem negar as evidências que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE veio apontando anualmente até 2015. De fato, qualquer que seja a linha monetária utilizada, a diminuição da pobreza foi expressiva ao longo dos anos 2000 a meados da década seguinte (Gráfico 1). Pela linha internacional de pobreza (3,2 dólares ppc – poder de paridade de compra com os EUA), esta caiu de 47 milhões em 2002 para menos de 22 milhões de brasileiros em 2015.
Para isso, contribuiu a expressiva elevação da renda domiciliar per capita dos 20% mais pobres (Gráfico 2). Nesse período, a renda domiciliar per capita real cresceu para todos os estratos (quintis) de renda domiciliar, e na média em 38%. Entre os mais pobres a elevação da renda foi expressivamente maior, quatro vezes mais que entre os mais ricos. Pelos efeitos da queda do desemprego, do aumento real do salário-mínimo e das transferências de programas sociais como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e aposentadorias do INSS, a renda dos 20% mais pobres aumentou, em termos reais, 84%, contra 23% entre os 20% mais ricos. É por esse motivo que se verifica que, paripassu à queda da pobreza, cai também o índice de Gini, de 0,59 para 0,51 nesse período. Destaque-se ainda que a renda cresce acima da média nacional no período para todos os extratos de renda, exceto para os 20% mais ricos.
Gráfico 1: Pobreza segundo várias definições de linhas de pobreza
Brasil 1992 a 2019 (em milhares de pessoas)
Fonte: Pnad 1992 a 2015 e Pnad Contínua 2015 a 2019 Nota: LP BSM: Linha de pobreza adotada no Plano Brasil Sem Miséria LP dppc: Linhas internacionais de pobreza adotadas na Agenda 2030 (em dólares ajustados ao poder de paridade de compra dos EUA)
É importante rememorar essas cifras pois a análise das tendências após 2015 ajuda a explicar o aumento da pobreza e desigualdade desde então. Em 2019 mais de 26 milhões de brasileiros eram pobres e os mais ricos dispunham de uma renda vinte vezes maior que os mais pobres. Não podia ser diferente: a renda domiciliar per capita dos 20% mais pobres diminuiu 10% em valores reais, enquanto os dos 20% mais ricos aumentou quase 8% entre 2015 e 2019. Os dados falam por si, como revela a comparação entre os dois períodos mostrada no Gráfico 2.
Em 2020 a trajetória de pobreza e desigualdade ainda é tema a ser mais investigado, quando dados mais consistentes estiverem disponíveis em meados deste ano. Certamente o auxílio emergencial de R$600, fruto de iniciativa popular e dos partidos de oposição no Congresso Nacional, cumpriu um papel estratégico, impedindo que a fome e o caos social se instalassem em meio aos crescentes números de mortes e infecções. Foi fundamental também para impedir que a recessão viesse a se aprofundar ainda mais e levar o país ao colapso. O impacto do auxílio sobre o bem-estar e a economia em 2020 seriam ainda mais significativos se as transferências não fossem, posteriormente, reduzidas pelo governo Bolsonaro para a metade, R$300.
Gráfico 2: Variação percentual da renda domiciliar per capita real por quintis (%)
(IBGE. Pnad 2002 e 2015)
(IBGE. Pnad Contínua 2015 e 2019. Suplemento Rendimentos Domiciliares.)
Infelizmente esse aprendizado não foi assimilado pelo governo federal, como revela a sua inapetência em se mobilizar mais rapidamente para continuidade desse mecanismo de proteção social básica, quando as tendências de aceleração do contágio no final do ano passado já prenunciavam para o presente. Ao permitir que o auxílio emergencial fosse interrompido em 31 de dezembro, e procrastinar a construção de solução até o final de março, o governo Bolsonaro contribui definitivamente para que a fome, a pobreza e as desigualdades sejam retroalimentadas pelo próprio crescimento da epidemia, e de resto contribuiu para perder mais um trimestre em termos econômicos.
Enfim, a comparação desses dois períodos nos relembra que pobreza e desigualdade não são fenômenos naturais e insuperáveis, mas consequências de decisões, indecisões, não decisões e desmonte de políticas. A redução sistemática e persistente da pobreza e desigualdade entre 2003 e 2015 foi um episódio de inflexão na história social brasileira. Ainda que expressiva, não houve tempo suficiente para transformar de modo definitivo a estrutura social do país. As consequências estão sendo sentidas dia a dia pelo povo brasileiro, na vida de seus familiares, no seu emprego e nas suas perspectivas.
Tereza Campello é professora visitante da Faculdade de Saúde de Publica da USP, colaboradora do Centro de Altos Estudos da Fundação Perseu Abramo e ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016).
Paulo Jannuzzi é professor universitário em estágio pós-doutoral na EBAPE/FGV e ex-secretário de Avaliação
Fonte: Diplomatique
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